Perspectivas genéticas e alcoolismo

Tempo de leitura: menos de 1 minuto

Estima-se que mais do que dois terços das pessoas em países ocidentais bebem mais do que apenas ocasionalmente. Nos Estados Unidos, aproximadamente 10% das mulheres e 20% dos homens preenchem critérios diagnósticos para abuso do álcool, e 3-5% das mulheres e 10% dos homens preenchem critérios para dependência ao longo da vida.

Neste país, o risco de alcoolismo é influenciado por fatores sociais como o sexo, o nível socioeconômico, a profissão e a religião. Assim como nos Estados Unidos, também na Suécia o risco é maior entre homens de nível socioeconômico mais baixo.

No Brasil, um estudo de morbidade psiquiátrica em áreas urbanas indicou que a prevalência combinada de abuso e dependência de álcool ao longo da vida seria de aproximadamente 8% no conjunto das amostras estudadas, representativas de São Paulo, Brasília e Porto Alegre. A avaliação em cada sexo revelou uma prevalência de 15-16% entre os homens e de 0-2,5% entre as mulheres.

O programa nacional de controle dos problemas relacionados com o consumo do álcool (Ministério da Saúde, 1987) estimou que no Brasil o alcoolismo seria: (1) a terceira principal causa de absenteísmo ao trabalho; (2) responsável pela ocupação de 9% a 32% dos leitos hospitalares e (3) relacionado com até 75% dos acidentes de trânsito.

O uso do álcool pelas mulheres grávidas também merece atenção especial na saúde pública, devido à grande prevalência e ao dano por ele provocado. A incidência da forma completa da síndrome alcoólica fetal, que envolve alterações no crânio, face e outras malformações, além de retardo mental e déficit de crescimento, é estimada em aproximadamente 2,8-4,6 a cada 1000 nascimentos nos Estados Unidos.

Esta prevalência sobe para 9,1 a cada 1000 se forem adicionados os casos de crianças com transtornos do desenvolvimento neurológico relacionado com o álcool, que não caracterizam a síndrome do álcool fetal. Este conjunto de problemas torna, as conseqüências do uso de álcool pela mulher grávida, uma das mais importantes causas de retardo mental.

Por este motivo, e pelo desconhecimento de uma dose limite segura, é recomendada a abstinência total de álcool durante a gravidez. Existe uma grande carência de estudos sobre a epidemiologia dos efeitos do álcool sobre o feto no Brasil, mas acredita-se que ele represente um grande problema de saúde pública.

O alcoolismo como problema multifatorial

Genes ou ambiente – estes dois fatores sempre polarizaram as discussões sobre a causa do alcoolismo. No início do século 20, o movimento eugênico incluía o alcoolismo em um grupo de “degenerescências mentais” hereditárias. Este movimento era repleto de preconceitos, e os seus participantes propunham até a esterilização dos doentes mentais, para que não transmitissem os seus males para as gerações futuras.

Paralelamente, surgiam a psicologia e a psicanálise, propondo, em contraposição, uma forte influência ambiental. Atualmente, a dependência química, assim como a maioria dos outros problemas mentais são incluídos na categoria das doenças multifatoriais. Nestas afecções, os fatores determinantes interagem entre si de maneira tão complexa que se torna difícil determinar um agente etiológico presente em todos os indivíduos afetados.

A maioria dos estudos com gêmeos observou uma concordância maior entre os monozigóticos em relação aos dizigóticos, sugerindo um efeito genético, principalmente no caso do alcoolismo masculino de início precoce.

Nos últimos anos, vários estudos de herdabilidade foram realizados utilizando uma grande amostra de gêmeos com base na população geral do estado norte-americano de Virgínia. A herdabilidade foi estimada em aproximadamente 50-60%, tanto para homens quanto para mulheres. Os autores também puderam inferir que embora a magnitude da influência genética seja igualmente elevada nos dois sexos, os genes envolvidos seriam apenas parcialmente compartilhados entre homens e mulheres.

A herdabilidade do alcoolismo é compartilhada em parte com a do tabagismo, o que explica a forte associação entre os dois problemas. Já o abuso de drogas não parece ser preditivo do alcoolismo em parentes.

A existência de uma predisposição genética também foi proposta em diversos estudos com pessoas adotadas: filhos de pais biológicos alcoolistas, quando criados por pais adotivos não-alcoolistas, apresentam um risco maior de desenvolver o alcoolismo, quando comparados aos filhos de não-alcoolistas sujeitos ao mesmo tipo de adoção.

Outro indício de existência de um componente genético vem de uma intensidade diminuída de reação ao etanol nos filhos de alcoolistas, quando comparados aos controles. Esta diferença fisiológica pode estar relacionada com uma maior suscetibilidade ao alcoolismo, devido a uma exposição mais freqüente.

Tais alterações menos intensas estariam relacionadas com sensações subjetivas de intoxicação, e performance motora; níveis séricos de prolactina, níveis de cortisol e de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) plasmáticos; e alterações no eletroencefalograma.

Bases moleculares do alcoolismo

Variações no metabolismo do álcool

Variações genéticas nas enzimas responsáveis pelo metabolismo do álcool (aldeído desidrogenase e álcool desidrogenase) determinam diferenças interpopulacionais na prevalência do alcoolismo, e constituem os únicos genes com um papel confirmado no alcoolismo. Um modelo bem estudado se refere a uma variação genética que confere uma menor atividade do aldeído desidrogenase mitocondrial, freqüente em populações orientais, responsável por um menor risco de alcoolismo entre os portadores.

A enzima aldeído desidrogenase converte o acetaldeído, o primeiro produto do metabolismo do álcool, em ácido acético. A deficiência nesta enzima provoca um aumento no nível sérico de acetaldeído após o consumo de álcool. Estes indivíduos tendem, então, a beber menos, já que esse aumento do acetaldeído, que é tóxico, provoca uma reação desagradável, que inclui vasodilatação periférica, náusea, cefaléia e taquicardia. No entanto, esta deficiência não é prevalente em populações ocidentais, e portanto não deve influenciar o risco de alcoolismo nestes países.

Genes candidatos no Sistema nervoso

Os estudos com gêmeos, pessoas adotadas e variações fisiológicas anteriormente descritos, embora demonstrem a existência de um componente genético, não permitem a identificação do mecanismo patológico e dos genes predisponentes à dependência. Além disso, os estudos familiares de ligação, que permitiram a identificação de inúmeros genes causadores de doenças mendelianas, não geraram resultados replicáveis por grupos independentes para loci ligados ao alcoolismo.

Um dos motivos levantados é a grande heterogeneidade e número de genes envolvidos neste problema. Por este motivo, os estudos caso-controle baseados no modelo de genes candidatos são hoje considerados mais promissores. Vale destacar que no caso de problemas multifatoriais, presume-se que existam muitos genes participantes, a maioria deles com um pequeno efeito, fazendo que seja muito difícil identificá-los em estudos de ligação. É preciso, então, focalizar o interesse em certos genes que apresentam maiores chances de aumentar a suscetibilidade.

Entre os sistemas neurofisiológicos possivelmente envolvidos na fisiopatologia da dependência estão aqueles relacionados com os efeitos depressores, de prazer e de recompensa provocados pelo álcool no sistema nervoso central.

O efeito depressor é mediado principalmente pela ação sobre os receptores de GABA, sendo este sistema também responsável por grande parte do mecanismo de neuroadaptação que gera a síndrome de abstinência. Já as sensações de prazer e recompensa estão intimamente relacionadas com a ativação do sistema dopaminérgico.

A partir do relato de Blum et al. (1990) de uma associação significante entre o alelo TaqI A1 gene do receptor D2 da dopamina (DRD2) e o alcoolismo, uma série de estudos independentes do tipo caso-controle e familiares sugeriram que o alelo TaqI A1 localizado na região 5′ à jusante do gene do receptor D2 da dopamina poderia ser um marcador para a predisposição ao alcoolismo. No entanto outro conjunto significativo de investigações não detectou o mesmo efeito.

Estudando o efeito fisiológico do alelo TaqI A1 do receptor D2, pesquisadores observaram em exames de cérebros post-mortem um menor número de sítios de ligação dopaminérgicos nos portadores do alelo A1, resultado corroborado in vivo.

Outro resultado na mesma direção foi obtido em um estudo de tratamento de alcoolistas, utilizando a bromocriptina, agonista do receptor D2. Os portadores do alelo A1 apresentaram uma diminuição mais acentuada na fissura e na ansiedade.

Como o polimorfismo está fora da região codificadora, a melhor explicação para uma menor expressão do receptor nos portadores do alelo TaqI A1 seria o desequilíbrio de ligação com alguma variante funcional nas regiões regulatória ou codificadora do gene.

Tentando resolver esta controvérsia, estudos com haplótipos incluíram variações funcionais do gene na análise mas os resultados ainda não puderam fornecer uma explicação fisiológica para a associação previamente descrita para o alelo TaqI A1.

No Brasil, foram realizados estudos de associação envolvendo o RFLP TaqI A do DRD2, VNTR do exon 3 do DRD4 e VNTR da região 3′ do DAT1. Os resultados sugeriram uma associação positiva do DRD2 com o alcoolismo, e também efeitos mais complexos para o DRD2, DRD4 e DAT1. Partindo do fato de que nos problemas multifatoriais o papel de cada gene envolvido depende da presença de outros fatores, foram exploradas possíveis interações envolvendo genótipos candidatos e temperamento sobre o curso do alcoolismo.

Verificou-se uma interação significativa entre o alelo TaqI A1 do DRD2 com o estresse e a prevenção de dano em medidas de gravidade. Além disso, uma análise de regressão demonstrou interações entre os genótipos contendo o alelo de sete repetições do DRD4 e homozigotos 10/10 para o DAT1 com procura de novidades no nível de consumo de álcool. Se replicados, tais achados podem indicar para estes genes um efeito modificador do curso do alcoolismo, agravando a dependência ou aumentando o consumo em indivíduos com determinadas características de comportamento.

Schuckit et al. (1999) constataram uma associação entre esse polimorfismo e um menor nível de resposta ao álcool, variável considerada uma possível mediadora da vulnerabilidade ao problema. Comparando homens e mulheres com alcoolismo e controles, pesquisadores detectaram uma associação entre uma variação no gene do receptor 2 A da serotonina (5HT2A) e o abuso de álcool em homens.

O repertório de genes candidatos para o alcoolismo não se restringe apenas aos sistemas dopaminérgico e serotonérgico. Genes em outros sistemas apresentaram resultados preliminares positivos para a predisposição ao alcoolismo. Estes incluem o Promotor do gene da Colecistoquinina, a Monoamino Oxidase e o receptor GABAAa6.

Heterogeneidade no alcoolismo

Tipos clínicos do alcoolismo

Embora praticamente todas as estratégias terapêuticas para o alcoolismo apresentem resultados positivos, incluindo psicoterapias e grupos de Alcoólicos Anônimos, muitos pacientes não apresentam melhora senão após várias tentativas fracassadas de tratamento ao longo dos anos.

A explicação para este aparente paradoxo está justamente na variabilidade genética e ambiental que compõe a heterogeneidade clínica do problema. Um tipo de tratamento válido para um paciente pode ser inútil para outro. Portanto, a busca por estratégias mais eficazes pode se valer da aplicação do conhecimento sobre esta variabilidade.

Uma série de tentativas tem sido desenvolvida para estabelecer tipos de alcoolismo, tendo como um de seus principais objetivos gerar condições para o desenvolvimento de pesquisas sobre abordagens terapêuticas específicas para cada grupo de pacientes.

Dois tipos básicos costumam estar presentes, representados, respectivamente, pelos tipos delta e gama de Jellinek (1960), B e C de Morey (1984), de desenvolvimento progressivo e anti-social de Zucker (1996), 1 e 2 de Cloninger (1987) e A e B de Babor (1992).

As diferenças fundamentais entre os dois tipos estão relacionadas com a idade de início dos problemas – um grupo apresentaria início precoce, um curso mais grave e tendência para associação com outros problemas psiquiátricos, incluindo a personalidade anti-social, enquanto o outro grupo teria um início mais tardio e menor gravidade.

No entanto, o mais importante estudo voltado para a avaliação da resposta ao tratamento não foi capaz de confirmar a utilidade da classificação em dois grupos (Project Match Research Group, 1997). Uma das possíveis explicações para este insucesso poderia ser a persistência de heterogeneidade residual significativa dentro dos grupos.

Reforça esta hipótese o fato de que alguns estudos têm sugerido a existência de três tipos de alcoolistas. Dois deles foram realizados no Brasil (Bau & Salzano, 1995; Bau et al., 2001b) e outro foi desenvolvido na Polônia. Estes estudos sugerem a existência de dois grupos de início precoce, os quais diferem em relação aos problemas psiquiátricos associados, características de temperamento e resposta ao estresse.

Até o momento, nenhum dos estudos clínicos sobre a heterogeneidade foi capaz de apresentar uma estratégia simples e confiável para a identificação de subgrupos válidos de alcoolistas. A própria comparação entre os trabalhos é difícil, tendo em vista as variações nos instrumentos utilizados, na gravidade do problema nas amostras e em outras diferenças epidemiológicas.

O estudo do efeito de polimorfismos genéticos na resposta ao tratamento oferece uma perspectiva promissora para uma medicina mais individualizada, que permita maior eficácia com menos efeitos colaterais.

Quando comparadas às avaliações clínicas e do comportamento descritas anteriormente, as informações moleculares apresentam as vantagens de ser estáveis ao longo da vida e permitirem uma avaliação mais objetiva.

1. Bau CHD, Almeida S & Hutz MH 2000. The Taq I A1 allele of the dopamine D2 receptor gene and alcoholism in Brazil: Association and interaction with stress and harm avoidance on severity prediction. American Journal or Medical Genetics (Neuropsychiatric Genetics) 96:302-306.

2. Bau CHD, Roman T, Almeida S & Hutz MH 1999. Dopamine D4 receptor gene and personality dimensions in Brazilian male alcoholics. Psychiatric Genetics 9:139-143.

3. Blum K et al. 1990. Allelic association on human dopamine D2 receptor gene in alcoholism. Journal of the American Medical Association 263:2.055-2.061.

4. Project Match Research Group 1997. Matching alcoholism treatments to client heterogeneity: Project MATCH posttreatment drinking outcomes. Journal of Studies on Alcohol 58:7-29.

Fonte: Drogas e Álcool sem Distorção

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *