Histórias em comum

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Para ajudar mais pessoas a entender a complexidade dessa doença traiçoeira, fantasiada de “costume social”, o jornalista e escritor Ruy Castro decidiu contar pela primeira vez os problemas que o álcool – que abandonou há 21 anos – trouxe à sua vida no passado.

Ruy já bebia bastante aos 19 anos, quando conseguiu um bom emprego em uma revista e deixou a família para morar sozinho no lendário Solar da Fossa, no Rio, habitado por artistas, jornalistas e boêmios. Foi quando começou a beber “profissionalmente”, de forma constante e crescente. “Eu bebia feito gente grande e não tinha ressaca”, conta Ruy.

“Comprava litros de scotch e também bebia bastante na casa dos outros, pois havia uma cultura do uísque naquela época – havia quem o comprasse em galões, daqueles com torneirinha, não garrafas.”

De 1967 a 1976, Ruy calcula que tenha bebido um litro de uísque por dia – no mínimo. Depois de uma fase encharcada por aquavit (uma aguardente escandinava), ao se mudar para São Paulo, em 1979, voltou ao uísque. Mas logo se converteu à vodca com gelo: “Se continuasse bebendo uísque escocês naquela quantidade, iria à falência.

E o uísque nacional era ruim, não dava para tomar. Mas a vodca era boa. Além disso, pelo fato de não ter gosto, era menos enjoativa para quem bebia em grandes quantidades. O problema é que ela também deixa cheiro, ao contrário do que muito bebum pensa…”.

Foi nessa fase – metade de 1984, quando começamos a namorar – que o álcool começou a interferir negativamente no seu comportamento social e profissional. Um ano depois fomos morar juntos, e uma amiga nos deu, como presente de casamento, uma dúzia de garrafas de vodca – que ele enxugou em menos de 15 dias. E ainda tentou disfarçar, colocando parte da culpa na empregada – uma atitude comum em alcoólatras não assumidos.

A partir daí, passei a prestar mais atenção e a perceber a rapidez com que as garrafas eram esvaziadas. Ainda não achava que ele era alcoólatra, mas começava a desconfiar que aquele jeito de beber não podia ser normal.

Em 1987, com o massacre sobre o organismo, Ruy finalmente começou a ficar alterado com certa frequência. Comecei a buscar informações sobre o alcoolismo e me convenci de que ele precisava mesmo de ajuda. Em agosto, numa festa, encontrei um amigo médico que tinha parado de beber um mês antes. Conversamos muito naquela noite e também depois, na casa do dr. Laco (personagem importante nessa história, como será visto adiante). Mais bem informada, comecei a “fazer campanha” para Ruy se internar.

Estava assustada, pois ele já apresentava sintomas da fase mais avançada do alcoolismo: não tomava café da manhã, não se alimentava, estava anêmico e não se cuidava. E eu estava solitária nessa batalha – ninguém acreditava que fosse necessário interná-lo. Como sempre, as pessoas achavam apenas que Ruy não tinha problemas, era apenas “um bom copo”. E era mesmo: no alcoolismo, as pessoas não precisam de problemas para beber. Mas, no que bebiam, os problemas iam surgindo uns atrás dos outros.

Por sorte, ele aceitou meus argumentos. Numa segunda-feira de manhã, 25 de janeiro de 1988, fomos para o Recanto Maria Tereza, clínica especializada em dependência química, em Cotia, a 30 quilômetros de São Paulo. Antes de sairmos, Ruy bebeu três doses de vodca, para “calibrar” a tremedeira das mãos. Porém, quando estávamos a três quilômetros da clínica, deve ter se assustado com a perspectiva de ficar longe da garrafa, porque pediu que voltássemos e deixássemos aquilo para outro dia. Acelerei e segui em frente, argumentando que já estávamos bem perto, não valia a pena voltar.

E, afinal, ele havia prometido. Na recepção, fez brincadeiras com a enfermeira que me envergonharam. Mas eu sabia que nada era mais importante do que conseguir que ele se internasse. Acreditava que ele deixaria de beber assim que entendesse o estrago que estava fazendo na sua vida. Naquele dia, Ruy se internou por três semanas.

Dias depois, cheguei à clínica para visitá-lo pela primeira vez e encontrei-o de mala pronta. Ia embora da clínica! Atordoada, corri aos médicos e perguntei se ele podia abandonar o tratamento. Eles responderam que, devido aos medicamentos e também à fase da desintoxicação em que se encontrava, se saísse e bebesse Ruy poderia até morrer. Mas duvidavam de que ele tivesse forças para fugir. E, de fato, ele não conseguiu. Naquele primeiro fim de semana, ainda parecia um pouco confuso – sentava-se e se levantava com dificuldade e não conseguia manter uma linha reta ao andar. Mas os médicos garantiram que em poucos dias ele ficaria bem.

Foram três semanas difíceis. Nos fins de semana, eu própria ouvia palestras e participava de terapias de grupo na clínica, que me ajudaram bastante. Mas nem tudo se acomodou na memória dele exatamente como na minha. Descobri isso apenas quando o entrevistei longamente em fevereiro passado, pois Ruy me garantiu que tentou trabalhar na clínica e não conseguiu. Primeiro, porque passou dois a três dias “tremendo mais que uma coqueteleira”, e, depois, porque lá não era lugar para trabalhar.

“A partir da metade do tratamento, quando recuperei a consciência, me apaixonei pelas palestras”, ele conta. “Era um vendaval de informações que me explicavam por que, a cada dia, eu precisava beber mais e mais cedo, por que não conseguia passar meia hora longe do copo e sobre os efeitos do álcool no organismo. Entendi as desculpas que eu próprio me dava para beber. E o que mais me surpreendeu foi descobrir que minha vida, que eu achava tão original, não passava de um grande clichê – porque todos os bebuns se comportam da mesma forma. Entendi que precisava passar a viver pela minha razão, não pela razão do álcool.”

Na verdade, a clínica acabou disponibilizando uma sala, onde ele colocou sua máquina de escrever e trabalhou todas as noites (exceto as primeiras), e também após o almoço – hora em que os internos viam tevê. Eu mesma me espantei quando ele trouxe para casa quase 50 laudas datilografadas com o esboço de um livro que se chamaria Saudades do Século 20. Qualquer médico ou interno daquela época pode corroborar que Ruy trabalhou durante sua internação. Mas ele não se lembra disso e acredita que jogou fora esse original. Deve ter jogado mesmo, pois um livro com o mesmo título acabou sendo lançado em 1994, mas não tinha quase nada a ver com o que ele escreveu na clínica.

Os especialistas explicam que o alcoólatra não esquece tudo o que fazia quando bebia, mas confunde bastante os acontecimentos – especialmente os da última fase. Ruy não foi exceção à regra. A primeira coisa que fez ao chegar em casa foi sentar à máquina e recomeçar a tradução de O Livro dos Insultos (de H. L. Mencken) do ponto em que tinha parado – o livro saiu meses depois, em junho de 1988. Voltou também a escrever para a Folha Ilustrada, Playboy e muitos outros veículos. Com a cabeça limpa e enorme disposição física, trabalhava cerca de 15 horas por dia, de segunda a segunda.

Logo foi convidado a colaborar com o Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo, ganhando bem mais. Ele mesmo conta: “Um dia fui ao Rio entrevistar o Tom Jobim para a Playboy e trouxe tanto material que tive a idéia de fazer o Chega de Saudade, a história da bossa nova, que saiu em novembro de 1990. Eu nem sonhava fazer livros, antes”. Esse é outro exemplo da distorção de memória produzida pelo álcool: antes da internação, Ruy não apenas sonhava fazer livros como tinha idéias maravilhosas – que apenas não conseguia pôr em prática.

Ele ainda lançou, em dezembro de 1989, uma seleção de frases que ganhou o título de O Melhor do Mau Humor. Ou seja: ao parar de beber, Ruy produziu três livros em dois anos e meio, além de incontáveis artigos para jornais e revistas. “Deixei de beber”, diz ele, “mas, com tanta atividade, nunca senti que tinham me tirado alguma coisa. Muitos alcoólatras ficam mal ao parar de beber, porque sentem que lhes roubaram algo muito importante. Nem todos têm paciência para esperar sua vida se reorganizar. E aí voltam a beber e pioram rapidamente se não forem internados de novo. Outros têm vergonha de que as pessoas saibam que eles foram internados e não imaginam que as pessoas ficam felizes quando sabem que um amigo resolveu se tratar”.

No trabalho, tudo ia cada vez melhor, mas em casa, não. Comecei a achar que estava casada com um perfeito desconhecido. Na verdade, eu também estava doente – como a maioria das esposas de alcoólatras – e precisava de ajuda. Mas não sabia. As famílias dos alcoólatras frequentemente “adoecem” junto com eles e muitas vezes se desintegram. Em vez de fazer uma terapia tradicional, como fiz, devia ter procurado um especialista em dependência química.

Só assim aprenderia que todo alcoólatra muda de personalidade por um bom tempo depois que deixa de beber; que uma boa parte deles vira workaholic e não consegue dar atenção à família nos primeiros tempos; e que o familiar do alcoólatra precisa de ajuda para sair da codependência; e também para entender as mudanças do alcoólatra abstinente. É bastante comum os alcoólatras, quando não perdem a mulher antes de se tratar, perderem depois. Foi o que aconteceu conosco: o alcoolismo dele não foi o único culpado pela nossa separação, mas foi o principal.

Nesses 21 anos, Ruy tornou-se um escritor respeitado, autor de dezenas de livros. Eu me sinto bastante recompensada por isso – apostava na inteligência dele e apostei certo, porque ele nunca mais bebeu. Depois de alguns anos da separação, nos tornamos amigos. “Fui privilegiado porque Alice acreditou em mim”, diz Ruy, hoje.

“Mas o fato é que os outros internos tinham a mesma história que eu. Havia lá um fazendeiro muito inteligente, um diretor teatral, um executivo de multinacional e outros mais simples. Mas todos tinham sido derrotados pelo mesmo inimigo. E ainda éramos prepotentes, pois achávamos que podíamos parar de beber na hora que quiséssemos! A internação foi uma oportunidade para eu ver que estava destruindo minha vida, e para reconstruí-la.”

Outros internos daquela época também pararam por algum tempo, mas alguns voltaram a beber e morreram. Porém, o que impressionou a equipe do Recanto Maria Tereza foi a rapidez com que consegui interná-lo. Levei apenas seis meses, quando a média, segundo os médicos, era de oito anos. Um deles me perguntou como eu havia conseguido. Expliquei que tinha blefado, convencendo-o de que ele só ia fazer uma desintoxicação, mas que fizera isso porque, no fundo, tinha medo de que Ruy morresse em dois ou três anos. O médico garantiu: “Do jeito que ele chegou aqui, só teria mais um ano de vida”.

Nunca esqueci essa frase, nem o rosto do médico – ele mesmo um alcoólatra em abstinência, como todos os que trabalhavam no Recanto.

Essa frase voltou a martelar minha cabeça agora, quando vivi outro drama com um parente muito próximo, que já consegui internar, há quatro anos, mas recaiu há oito meses e preocupou toda a família. Quando me vi novamente no palco desse drama – e com pouca plateia -, pedi a Ruy que finalmente contássemos nossa história.

Nos últimos meses, tenho me lembrado do pesadelo que foram as duas internações; do ceticismo dos amigos e familiares, que não entendiam que era a única forma de salvar a vida deles naquele momento; das histórias que ouvi na clínica; dos rostos angustiados dos familiares; e, principalmente, tenho recordado que todas as histórias são sempre muito parecidas. Mas o final só é feliz quando o familiar do alcoólatra consegue convencê-lo a se tratar.

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