Cresce abuso de álcool por adolescentes

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Uma banheira com gelo lotada da cerveja mexicana Corona. Era o capricho da menina para sua festa de 15 anos. Em Pernambuco, entre os serviços opcionais para as festas orçadas em até R$ 300 mil, estão bares luminosos, taças de um metro de altura com bebidas turquesa e drinks exclusivo (e exótico) da debutante. Com álcool ou sem álcool? Cabe aos pais contratantes decidirem como querem. Com ambulância ou sem ambulância de suporte? A leniência das famílias e a naturalização do ato de beber estão no topo dos fatores de riscos; danos causados em cérebros em formação são irreversíveis e invisíveis a leigos. Na esteira, prejuízos no rendimento e evasão escolar, vulnerabilidade à relação sexual desprotegida e à violência.

Em um consultório médico, um jovem precisa tratar do recente vício. Alcoolizado, ao lado de amigos, havia praticado assaltos no próprio prédio. Uma outra mãe revela à reportagem que há pouco encontrou na bolsa da escola do filho de 14 anos uma garrafa de vodca. Surpresa, perguntou a origem. A resposta do garoto: “Foi em um delivery”. Para deliverys, a fiscalização quanto à idade do consumidor passa longe. Durante duas semanas, o Diario investigou hábitos entre adolescentes. A revelação: o acesso e consumo de substâncias alcoólicas perpassa todas as classes sociais. Só muda o como. O Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA)/ SP divulgou na última quarta-feira a pesquisa Álcool e a Saúde dos Brasileiros Panorama 2020, que reconhece resultados positivos e queda do consumo geral, mas destaca preocupação com o crescimento do uso por mulheres. E adolescentes. Eles estão bebendo mais cedo: a média da experimentação é de 12,5 anos. Pior: 55% de alunos com idade entre 13 e 15 anos (9º ano) já consumiram bebida alcoólica.

“Estou alarmada com o crescente consumo dos adolescentes. E aqui, no Nordeste, a prática é piorada por questões culturais. Tem a cana-de-açúcar e o machismo”, diz a pediatra Betinha Fernandes, há 35 anos especialista em Medicina do Adolescente. A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), da qual Betinha faz parte, lançou mês passado nota de alerta sobre o tema, que ganha força no verão.

O acesso à bebida se dá em festas, amigos, bares e supermercados por ambulantes. Este ano, em eventos como Carnaval, fazem sucesso bebidas coloridas, doces, alto teor alcoólicos e nomes infantilizados a R$ 10,00 o litro. Tanto produzidas industrialmente como de maneira artesanal.
No carrinho do vendedor de raspa-raspa agora tem até um opcional: cachaça. Custa R$ 4,00 a dose da misturinha. “Raspa-raspa é tradição na família e eu trouxe esta inovação”, diz o ambulante no Marco Zero, Bairro do Recife. “Os jovens adoram”, afirma. A legislação é clara: vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar bebida alcoólica a criança ou a adolescente é crime, segundo a Lei nº 13.106/2015. Pode implicar de dois a quatro anos de prisão e multa ao infrator.
A fiscalização nas festas abertas, como se viu no Marco Zero no carvaval, é frouxa – assim como acontece em comemorações de 15 anos. Entre os ricos, muitas vezes depende da equipe de bartenders decidir quando, a quem dar a bebida e quando parar. Wilson Melo, cerimonialista da Celebrate, uma das mais conceituadas empresas de festas de Pernambuco, confirma a tendência: “Hoje, 50% das famílias optam por festas de bebidas com álcool”. É um cenário, afirma, que não se via há alguns anos. “A orientação a ser dada é não ter bebida com álcool em 15 anos. Avisamos que toda a responsabilidade é dos pais. Mas muitos adolescente conseguem convencê-los”, afirma.
Sem se identificar, um dos mais requisitados bartenders da cidade tenta convencer a reportagem que “o teor alcóolico é baixo” e não oferece risco. Qualquer percentual é ameaça, diz Betinha Fernandes. Adolescentes, com o álcool, se tornam mais vulneráveis e impulsivos. Na quinta-feira pré-carnavalesca, um rosto do consumo prematuro do álcool afundava nas águas do Rio Capibaribe. O adolescente pulou, sem saber nadar, deixando perplexos os colegas do rolezinho animado com o ritmo do Passinho e bebidas com sabor de chiclete – teor alcoólico de 20% a 30%. Com idade entre 12 e 17 anos, bêbados, não sabia se choravam ou sorriam. “Todo mundo aqui bebe. Eu comecei com 8 anos. Foi com minha mãe mesmo que deu uma espuminha de cerveja”, disse Gabriel*, agora com 13 anos.
O garoto que imergiu no Capibaribe foi salvo por um Catamarã (outro jovem de 24 anos morreu na quarta-feira de cinzas da mesma forma, no mesmo local, defronte do Armazém 14). Os adolescentes do rolezinho saíram de diferentes escolas públicas do Recife para o arriscado encontro juvenil. A repercussão sobre o ambiente escolar é um problema extra. 

Começa com a “espuminha” Uma panela de chambaril gordo no fogo, música alta, gente dançando e era nesta cozinha onde tudo se resolvia para a família de Luís*. Tinha pouco mais de dez anos quando viveu a primeira experiência. Pareceu inofensiva e serviu de graça para os adultos. Luís era o caçula, enchia os copos de cerveja dos mais velhos, saia para comprar outras garrafas na bodega da esquina e ouvia o jargão “nessa família todo mundo bebe e, se não bebe, não é homem”. Luís bebia. “Passamos por um cenário de decadência por causa daquilo”.
Aos 14 anos, tinha todo o comportamento de um alcoólico. Até os 17, o interesse dele pela bebida só crescia e as oportunidades profissionais, algumas excelentes, desapareciam. Dos 17 anos aos 21 anos, “foi um caos”. Estava com dois filhos e a ameaça da esposa de deixar a casa. Alucinações, delírios, medo da morte, pensamentos suicidas e desmoralizado diante do mundo. Dos 21 aos 27 anos, dizia para si mesmo que sabia controlar a tentação da bebida. Sabia Luís a origem dos 13 anos sequenciados de bebedeira intensa: a espuminha amarga quemolhou seus lábios na infância. “O diminutivo pode funcionar pra quem não é alcoólico; para quem tem tendência, não”. Descobrir quem é ou vai ser é uma loteria. No próximo dia 31 de julho, Luís completará 30 anos abstêmico. Sua vida é dedicada à equipe de coordenação dos Alcoólicos Anônimos de Pernambuco (AA), estado que tem 424 equipes atuando no combate ao consumo. No AA poucos frequentadores têm menos de 15 anos; entre os mais maduros, no entanto, é comum um histórico iniciado na primeira fase da Adolescência.  Júlia bebe cerveja e catuaba; ela é da geração iniciada aos 12 anos

Lei proíbe venda de bebida a menos 100 metros de escola, mas é desobedecida Encontrar litros de vodcas dentro de mochilas de alunos com idade entre 13 e 15 anos era comum dentro da Escola Municipal Maria de Sampaio Lucena, Ibura, um dos bairros mais pobres do Recife. Na balbúrdia das festas, estava a melhor oportunidade para que adolescentes e jovens entrassem com bebidas misturadas a refrigerantes ou puras, escondidas em seus livros. Decisão extrema: não há eventos para datas comemorativas na unidade. Desde o último São João é assim. A Maria de Sampaio Lucena tem cerca de 650 alunos.
“Era muito nocivo e a gente precisava de uma solução”, conta a vice-gestora, Ana Cristina Silva, em consonância com a PeNSE, última pesquisa de Saúde Escolar do IBGE. O estudo diz que a maior parte dos adolescente aponta as festas (43%), lugar propício à socialização, como o lugar onde o acesso é mais fácil. (“Eu era gordinho, mas quando fiquei brisado aos 10 anos pela primeira vez com cana, peguei uma mina e aí não parei mais”, contou André* ao Diario.)
Lideranças influenciadoras identificadas, conselho escolar comunitário convocado e um novo portão de ferro compôs o projeto para combater este mal que ameaça a atual geração e é, por vezes, banalizado. Como professora, Ana Cristina sofria ao ver alunos perdidos para o vício. Com Júlia* o enfrentamento começou aos 12 anos. Pesquisas indicam que o consumo antes dos 15 anos eleva em quatro vezes o risco de dependência no futuro. Criada pela avó enfermeira, de formação evangélica, ela se rebelou. “Bebia cerveja e catuaba”, conta a mãe, C. de Araújo*, referindo-se a uma bebida processada com 15% de álcool. “Minha filha foi expulsa da Maria de Sampaio e de outras quatro escolas. Deu entrada no DPCA cinco vezes”. VEJA DICA PARA OS PAIS Mulheres têm bebido em maior quantidade e mais cedo. Este éoprimeiro desafio atual a ser enfrentado pelo Brasil, pontua o psiquiatra Arthur Guerra, presidente do CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), que prefacia pesquisa do CI- SA. Em 2010, 14% de jovens mulheres diziam ter praticado uso abusivo de álcool; em 2018, foram 18%. Mulheres são mais vulneráveis ao álcool, diz o CISA, por causa do tempo para metabolizar o álcool. Os jovens pelo prejuízos que pode causar no sistema nervoso central em formação. “Cada dia tem mais jovem nesse ciclo. A gente se empenha, tenta ajudar cada família que nos chama, mas as tentações são enormes. Uma delas é a promoção desses paredões”, explica o conselheiro tutelar Luciano Marques da Silva. Os paredões são festas de rua das periferias, embaladas por sons gigantes que surgem da mala de um carro.
No Recife, o único Caps (Centro Médico Psicopedagógico) Infantil Professor Luiz Cerqueira confirma que houve aumento da demanda. Passou de três usuários de álcool em 2018 para 31 em 2019; 99% dos casos são de jovens em vulnerabilidade social. A Prefeitura do Recife não tem “dados de ambulatório nem de emergência”, em se tratando de adolescentes alcoolistas em atendimento psicológico – o que em tese serve a famílias não-vulneráveis. Quando se trata de prevenção e coibição, toda a rede de proteção parece esgarçada para o álcool. Em dezenas de escolas, muitas vezes sequer é cumprida a Lei estadual Nº 10.454, que dispõe sobre o estabelecimento de perímetro de segurança escolar. O texto proíbe a venda de bebidas alcoólicas na área do perímetro de segurança, a menos de 100 metros de escolas. O Ministério Público acabou a força-tarefa para o enfrentamento do problema. Atende a demandas esporádicas. A Polícia Militar promove palestras em escolas sobre o uso de drogas. Diz que o trabalho tem sido mais voltado ao consumo de crack, cocaína por “falta de registros”. A Secretaria de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas do estado promete campanha sobre o tema a ser lançada em abril. 
*Nomes fictícios e simplificados, de acordo com o estatuto da criança e adolescente.

Fonte: Diário de Pernambuco

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