Jornal sobre álcool: Combustível da ruína

Tempo de leitura: menos de 1 minuto

Jovem, bem-humorado, formado em duas faculdades, com quatro pós-graduações concluídas, inglês fluente e situação econômica favorável. Nem mesmo credenciais como essas foram suficientes para que Marcel (nome fictício) não se entregasse ao álcool. Hoje, aos 35 anos, ele está pela segunda vez internado em uma clínica de reabilitação, no interior de São Paulo, tentando superar o vício alimentado durante 20 anos.

“Desde os meus 15 anos bebi muito, e isso não me fazia mal. Eu continuava com a minha rotina: trabalhava, estudava, fazia exercícios, saía com os amigos. Até que um dia, há mais ou menos 2 anos, eu percebi que não podia mais controlar o vício e que o álcool passou a ser o que me movia”, relembra o dependente.

Ele faz parte da triste estatística divulgada pela Secretaria de Saúde de São Paulo, que indica que 80,7% das pessoas que procuraram atendimento para tratar a dependência deram o primeiro gole antes dos 18 anos. Destes, 16% experimentaram bebida alcoólica antes dos 11, geralmente, na presença de familiares.

Considerado uma droga psicotrópica, que atua no sistema nervoso central e provocam mudanças no comportamento, e com potencial para desenvolver dependência, o álcool é uma das poucas drogas deste tipo que tem o consumo admitido e, pior, estimulado. “O próprio pai pede que o filho dê um golinho e o convida a fazer uma caipirinha. Os pais não aceitam que o filho fume maconha e até o cigarro é menos tolerado, mas a bebida alcoólica é tida como algo normal”, afirma a psicóloga Ana Laura Parlatto, diretora da Unidade de Tratamento de Alcoolismo da Clínica Viva, no interior de São Paulo. Esse hábito, no entanto, tem sérias consequências.

Nem todo adolescente que consome álcool precocemente vai virar um alcoólatra, mas uma pré-disposição genética pode desencadear a doença. De acordo com cientistas espanhóis, traços da personalidade de uma criança podem revelar a predisposição ao abuso de álcool no futuro.

Segundo eles, as crianças mais extrovertidas, aventureiras, impulsivas e menos responsáveis são as que têm maior probabilidade de desenvolver dependência ao longo dos anos. Entretanto, o estudo alerta que isso não é regra, e é preciso levar em conta outros fatores, como a combinação de outras características e o contexto social.

Além de começar a beber cada vez mais cedo, os brasileiros também consomem mais a cada ano. Segundo o Ministério da Saúde, enquanto em 2006 16,2% da população assumia beber exageradamente, em 2009 esse percentual subiu para 18,9% (veja a situação de cada Estado no gráfico ao lado). Outro dado alarmante é que o brasileiro consome em média 18,5 litros de álcool por ano, três vezes mais do que a média mundial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

“A industrialização da produção de bebidas alcoólicas e a globalização das propagandas e da promoção do álcool fizeram com que o consumo dessa substância aumentasse. Nota-se também que o aumento do poder aquisitivo está diretamente associado ao aumento do consumo de álcool”, completa Erica Siu, pesquisadora sênior do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).

“No final, eu já estava bebendo meia garrafa de uísque sem perceber”, afirma Marcel, hoje consciente das consequências negativas do uso abusivo de bebida alcoólica e das dificuldades da ressocialização. Um desmaio em uma casa noturna foi o que desencadeou a primeira internação. “Sabia que não conseguia mais controlar, mas pensava que podia resolver tudo longe da clínica. Depois desse acidente eu e minha família nos convencemos de que era hora de procurar ajuda”, recorda.

Separado e pai de uma menina de 9 anos, ele aproveita cada dia da fase final de recuperação e lamenta a recaída que teve após ficar cerca de 80 dias internado. “Me sentia confiante, fortalecido e preparado. Achava realmente que estava pronto para encarar os desafios, mas não estava e depois de 8 meses tive uma recaída. Hoje sei que o mais importante é estar 24 horas por dia vigilante e que não é possível controlar a vontade sozinho”, reconhece.

Segundo a psicóloga Ana Laura, mesmo após o tratamento o dependente não pode voltar a consumir: “Se a pessoa beber, nem que seja pouco, ela vai voltar rapidamente ao padrão de consumo anterior ao tratamento. Isso é biológico. O segredo é não deixar de ir aos lugares relacionados ao álcool, mas, sim, desenvolver habilidades para enfrentar a tentação, que sempre vai aparecer”.

Marcel afirma que resolveu procurar ajuda novamente depois que viu que seu vício estava passando a fazer mal também a sua família. “Meu pai e minha filha são muito importantes para mim. Eu sempre fui o braço direito dele nos negócios e quero que minha filha cresça ao lado de um pai são”, afirma.

O que aconteceu com Marcel é padrão em todos os casos de alcoolismo. Um estudo recente elaborado por cientistas britânicos aponta que o álcool é a droga mais nociva, à frente do crack, da heroína e da cocaína, quando levados em conta, além dos danos pessoais, os pre-juízos à sociedade.

“O alcoolismo não é uma doença transmissível, mas é uma doença que contagia. Ela afeta toda a família do dependente. Nós dizemos que em volta de cada alcoólico há ao menos outras nove pessoas doentes”, afirma uma coordenadora do plantão telefônico dos Alcoólicos Anônimos (A.A.) de São Paulo, que preferiu não se identificar.

Fonte: Raquel Maldonado – Folha Universal

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *